No livro “Quadros da Experiência Social: uma perspectiva de análise” (1974), o sociólogo canadense Erving Goffman introduz e desenvolve seu conceito de Quadro. Para o autor, o modo como experienciamos as situações sociais do cotidiano é organizado por um processo de enquadramento o qual nos permite responder a pergunta: o que está acontecendo aqui?

É com base neste processo interpretativo da situação e daqueles que estão envolvidos nela (ex.: cenário, atores, objetos, adereços etc.) que podemos obter informações (pistas simbólicas) que nos permitem entender o que está acontecendo e, partindo de experiências anteriores, avaliar quais são as linhas de ação (comportamentos) socialmente aceitas e compartilhadas. 

Para complexificar ainda mais o entendimento sobre este processo de organização da experiência social, Goffman sugere que um Quadro pode ser (1) Quadros Não-transformados (Quadros Primários) ou (2) Quadros Transformados (Quadros Maquinados e/ou Tonalizados). 

1. Quadros Não-Transformados (ou Quadros Primários), pode ser dividido em dois tipos: (a) Quadros Primários Naturais (b) Quadros Primários Sociais

a) Quadros Primários Naturais: experiências não-orientadas, não-animadas e/ou não-guiadas. Este tipo de enquadramento ocorre quando observamos manifestações da natureza como, por exemplo, o amanhecer, a chuva etc. Ou seja, ocorrências nas quais não haveria algum tipo de agência humana ou mesmo uma intencionalidade. 

b) Quadros Primários Sociais: experiências controladas (com agência humana), baseadas em regras, leis, normas, hábitos, cultura, relações de poder, instituições, organizações etc. Aqui podemos mencionar uma lista infinita de fenômenos e situações produzidas pela ação humana (Ex.: uma aula, uma partida de futebol, uma peça teatral, uma entrevista de emprego, um evento cultural ou até mesmo um simples bate-papo etc.).

Para Goffman, diferentes contextos sociais e históricos podem gerar diferentes repertórios de Quadros Primários.

2. Quadros Transformados (Quadros Maquinados e Tonalizados), quando um determinado Enquadramento Primário sofre alterações. 

a) Quadros Maquinados, por exemplo, é comum em situações em que há uma assimetria entre os envolvidos em relação ao que está acontecendo no Quadro. Ou seja, ao menos um dos indivíduos envolvidos não sabe que aquela situação foi transformada e é enredado (Ex.: podemos ver isso em pegadinhas, surpresas, golpes etc.). 

b) Quadros Tonalizados, por sua vez, todos os envolvidos em uma determinada situação sabem que o Quadro foi transformado (Ex.: podemos ver isso em brincadeiras, faz-de-conta, cerimônias, ensaios, treinos etc.).

Ainda segundo Goffman, um determinado Quadro pode ter inúmeras Laminações, ou seja, camadas que podem complexificar aquilo que está realmente acontecendo nele e, caso um indivíduo não seja capaz de “ler” uma ou mais destas camadas, sua compreensão pode ser comprometida levando, inclusive, a uma Ruptura do Quadro – como consequências podemos averiguar uma leitura equivocada do que está ocorrendo no Quadro ou mesmo comportamentos inapropriados em relação às expectativas dos envolvidos na situação. 

O Quadro Pandêmico

Partindo desta digressão conceitual sobre os Quadros da Experiência Social proposto por Goffman, levanto abaixo alguns pontos de reflexão que emergem do contexto de Pandemia (COVID-19) que estamos vivenciando e que podem servir como pontos de partida para outros pesquisadores que também se interessam pela interface entre Interações Sociais, Tecnologias Digitais e Sociedade.

1. Podemos compreender esta Pandemia enquanto um Quadro mais amplo que organiza os outros Quadros da Experiência Social?

A característica globalizada da Pandemia e as medidas de combate à sua disseminação são aspectos que integram o que estamos chamando aqui de um “Quadro Pandêmico“, ou seja, um Quadro mais amplo que afeta, em maior ou menor grau, diversos Quadros da Experiência Social (sejam eles não-transformados ou transformados).  

Entre os aspectos que compõem este Quadro Pandêmico, podemos listar alguns exemplos como:

(a) Medidas de distanciamento físico para impedir a disseminação do vírus;

(b) Medidas de higiene pessoal para previnir a contaminação do vírus;

(c) Fechamento temporário de espaços públicos e comerciais para evitar aglomerações;

(d) Circulação de informações (inclusive as falsas “fake news”) sobre tratamentos, grupos de risco de morte (Ex.: hipertensos, diabéticos, obesos), ações sociais etc.

Estes exemplos retratam acordos, regras/normas, informações que surgem a partir do Quadro Pandêmico e que integram o processo de organização (enquadramento) de outras situações sociais cotidianas.

2. Como as TIC (Tecnologias da Informação e da Comunicação) estão sendo usadas e apropriadas em diferentes situações neste Quadro Pandêmico?

Neste tópico, podemos mapear situações sociais específicas para analisar de forma mais aprofundada caso a caso. É importante identificarmos não só as plataformas/recursos utilizados para a interação na situação escolhida, mas também mapear os usos e as apropriações feitas antes, durante e após o Quadro Pandêmico.

Um ponto que perpassa todas estas situações é: como os indivíduos usam as TIC para contornar contingências emergentes do Quadro Pandêmico?

Algo que está chamando a atenção, por exemplo, é a adesão crescente a soluções/práticas que já existiam, contudo não eram a regra ou não eram experienciadas majoritariamente de forma mediada. Entre estes exemplos, podemos citar: o crescimento das videoconferências para aulas e reuniões de trabalho; investimentos em Ecommerce, relacionamento mediados com consumidores e soluções de Delivery; realização de Lives de para atividades de entretenimento (ex.: shows, peças, talkshows etc.); realização de consultas médicas e psicológicas (ex.: Telemedicina), entre outras.

No post anterior, falei um pouco sobre como os usuários do Instagram estão usando as Lives enquanto mais uma estratégia de Apresentação de Si e Gerenciamento de Impressões neste contexto de Pandemia. 

Partindo de casos específicos (ex.: reunião de trabalho, consulta médica, diversão com amigos, paquera etc.), que tipos de acordos interacionais estão sendo mantidos, transformados ou até mesmo criados no contexto de interações mediadas por TIC diante do Quadro Pandêmico ?

Quais serão os desdobramentos possíveis do Quadro Pandêmico nas práticas interacionais, sejam elas em presença física imediata ou mediadas por TIC? É uma pergunta difícil de responder agora, mas, com base no que estamos vivenciando, cito aqui algumas perguntas que podem ser investigadas:

(a) Crescimento ou mesmo uma predileção por interações mediadas em contextos e situações sociais que antes eram prioritariamente (ou exclusivamente) em presença física imediata?; 

(b) Afrouxamento de regras e restrições para a realização de serviços e atendimentos que antes eram majoritariamente (ou exclusivamente) em presença física imediata?; 

(c) Emergência de soluções ou mesmo apropriações de soluções já existentes para ampliar (e complexificar) a percepção da presença do(s) outros(s) indivíduos envolvidos nas interações mediadas?; 

(d) Transformação ou mesmo criação de novos acordos e dinâmicas interacionais em diferentes ocasiões/situações sociais? 

(e) Crescimento no número de indivíduos com dificuldades em lidar com situações constrangedoras em presença física imediata? 

Estas são apenas algumas das questões entre as inúmeras que podem emergir como consequências diretas ou indiretas deste Quadro Pandêmico.

  1. Boni Sobrinho

    Um quadro pandêmico que mais parece um vitral, contido de peças multicoloridas, que assimilaremos a cada instante para nos adaptarmos. Adaptamo-nos mais que nunca ao que parece o tempo , no presente, ajustando as peças que se transfiguram em reconfigurações, nesta tela do não dito, na possibilidade da finitude e identificação, sim, do fim das formas de existência – ao menos aquelas aprendidas e maturados nos últimos 300 anos.

    Qual seria, senão, uma nova estrutura de uma pós modernidade que ascena, ali na esquina, reconfigurando tudo que sabemos sobre o mundo, devido, sobretudo, a nossa flexibilidade em acessar, assimilar, entender e viver: nú mundo, que deixou de ser (en)quadrado.

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